Folhetim | Casa de Hóspedes (4º. Episódio)

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FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

Casa de Hóspedes (4º. Episódio)

Dona Júlia, filha única, escola primária acabada, foi aprender costura com a Ermelinda Nabeira, uma jóia de mulher, umas mãos de fada, que nada recebia por ensinar, como não acontecia com outra gente aproveitadora do trabalho de crianças, e que ainda lhe dava um lanchinho, pão com toucinho ou azeitonas.

Casou-se cedo, Dona Júlia, teve tudo, como dizia, com os olhos humedecidos, à D. Laura do primeiro andar, tudo, D. Laura, amor, compreensão, conforto, nada de luxos, mas vida decente, agora é tudo tão diferente, a minha casa, a minha vida, mudaram como do dia para a noite, pois, já tive, diz bem, há quem não tenha sabido o que é a felicidade no casamento, é o que mais há, a senhora que o diga, coitada, deixe lá, pode ser que ele mude, não lhe bate, o que já não é nada mau, que o vinho é o diabo, dá conta de um homem, de uma casa, os seus filhos são seus amigos. Esses também sofrem, já tão crescidinhos, nada lhes escapa, chegam a ter medo do pai quando a bebedeira lhe dá para atirar murros na mesa e dizer palavrões, como se nós tivéssemos culpa de o patrão ser aquela besta, lá nisso ele tem razão, um pançudo cheio de dinheiro, sempre a avisar quem não está bem muda-se, aqui qualquer dia pode ser fim do mês, e o meu, que não pode responder, a alombar todo o dia com aqueles carregos todos, vinga-se no vinho e a família é que paga.

Os cunhados de Dona Júlia são boa gente, ampararam-na muito quando o marido partiu, mas eles têm a sua vida, os seus trabalhos, o filho, muito inteligente, sai ao pai e ao tio que Deus tem, ambos umas cabeças brilhantes, tivessem eles podido estudar e seriam gente importante e falada. Andam ralados porque o rapaz foi chamado para a tropa, esta guerra que não tem fim, lembro-me bem, era o meu sobrinho pequenito, de ouvir a minha cunhada dizer o que vale é que quando o meu filho for crescido já a guerra acabou, e afinal aí está ele à beira de ser levado para África, se for para a Guiné então vai ser uma aflição ainda maior. Que coisa, porque é que os pretos são assim tão beras, afinal fomos nós que que fizemos deles gente, que lhes demos escolas e igrejas, que eles nem rezar sabiam, credo em cruz, porque é que a Dona Júlia diz que não é bem assim, o que é que sabe que eu não sei, nada, então se nada não se afoga. Vou andando, D. Laura, que as conversas são como as cerejas e hoje é o meu dia de esfregar a escada.

 

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